25 novembro 2005

Neve

Neve
O tempo cheira a neve. O manto branco que me leva para tanto de mim. É nele que embrulho alguns esguiços olhares e raros calores de outros tempos. Sempre que a vejo, sempre que a toco, há em mim uma limusine parada de sensações. Quase sorrio. Gosto de a observar em silêncio. Sempre que o tempo me deixa deixo-me esbarrar. É como se o meu corpo, congelado, fosse um amontoado de sentimentos e tradições. O embalo é imperturbável. É assim que o vivo como se criasse uma história sem mote.
Hoje parei num olhar rebelde. Sem norte mas com uma inquietante personalidade. Cozemos o tempo como uma partilha de lareira. Destapamos o que acreditamos e contemplamos, quase no fim, o céu branco. As palavras tinham a ânsia descomungada. Foi ai que alguém soltou: "Hoje vai nevar...". Continuamos a subir a calçada à espera dos pedaços brancos.

23 novembro 2005

Saudade

Esta será porventura a palavra que melhor descreve a linguagem e o sentir português...

A saudade apodera-se de nós, especialmente nos momentos a seguir às despedidas - árduas - em que parecem não existir outras pessoas com quem conviver.

Pensar no que passamos juntos, nas conversas que tivemos, nas maluqueiras que faziamos...

Pior é pensar que perdemos a oprtunidade de viver juntos as experiências actuais, diferentes é certo, mas mais saborosas quando partilhadas.


"E regresso às duas coisas nulas em que estou certo,
de nulo também que sou - à minha vida quotidiana de
transeunte incógnito, e aos meus sonhos
como insónias de acordado."
( Fernando Pessoa )


Roda do tempo

Roda do tempo
Estou na roda do tempo. Quase sempre estamos. Uma vertigem insuflável que abomina o mais secreto avanço. Troco, com o companheiro do lado, um postal de amizade na esperança de o deter por entre os dedos. É neste círculo invisível que construo, tantas vezes, o tempo. O que tenho e o que me foge. O que possuo no silêncio da mais amarga noite e o que não agarro na mais sensata luminosidade. Não faço balança porque abomino o que defendo como incomparável. Afinal, cada qual é como o lince que observa, de soslaio, a presa. Uma bandeja com nada. Um serpentear de ilusões. Um cavaco brando oleado por um trago.
A páginas tantas deixo o que nunca deixo. Um palco nu à mercê dos aplausos que não se ouvem.

22 novembro 2005

Desordem

Desordem
Há dias que a lógica me atormenta. Pontapeia o que mais preciso: a desordem. Tenho em mim um sussuro leviano que me empurra para o nada. É nele que alinho o meu caos interior. Sobrevivo à custa da ponte imaginária que sustento na insustentável penumbra dos meus olhos. Não há guia nem abraço que alimente esta penumbra decadente. O degredo não é maior porque floresce a inesgotável ternura do gesto. Eis-me ali sem nada e com tudo. Tenho até hoje a hipocrisia sobrenatural de me manter de pé sentado numa mesa de paz.
Sem contar, corre uma voz pueril, virgem, que enche o sonho de menino e me impele a continuar.

21 novembro 2005

Parir

Parir
Ao parir este curto texto dedilho a mente.
Parir é criar. É ver nascer. É sentir o que não havia. É tocar no novo.
Barroso é chão fértil. Natureza e homem beijam-se muitas vezes. Tocam-se. Por entre dias, vislumbrei momentos ricos: parir da ovelha; abrir de olhos do pássaro; calor da língua da vaca em volta do rebento; disparo fértil da coelha; olhos doces da gata; inquietude, em copa, da cadela; abraço da galinha.
Este fado resiste. Basta saltar a barreira. Mergulhar no pó. Corroer o caminho.
Nesta pátria há lugar à escolha porque ainda possuimos o enlevo do Mundo pintado a preto e branco.

19 novembro 2005

Serões

Serões
Rasgo a minha infância de várias formas. Uma delas é quando invoco os serões onde a televisão era um ser estranho. Matava-se o tempo por entre fumo e prosa. A luz era fraca. O frio entrava em postigos que sinalizavam portas e janelas. Não existia pudor no contacto, na partilha. As mesas eram de madeira fumada. Os pratos de esmalte roído pelo uso. Os copos, pequenos e poucos.
Tinha palmo e meio de vida. Observava, com olhos largos, a caneca de vinho que girava de boca em boca. Tinha uma jarra escura, desenhada, com água, como companheira.
Nesse tempo, as histórias eram arte. O tempo dava tempo ao tempo. As mãos calejadas eram afagadas pelo calor da lareira. Neste palco, havia lugar e licença para cães e gatos. Os restos caiam como folhas de Outono.
Hoje sugo esse tempo com a felicidade dos dias felizes. Não lamento a perda porque vivi em harmonia. Porém, neste passado sem dupla anoto que recebi mais do que dei.

18 novembro 2005

Avó

Avó
Manhã cedo pisei o chão da casa da avó. A avó que já não tenho. A mulher de rugas na guelra que não morre em mim. Era nela que via o fiel retrato do Barroso. Uma gravura de olhos azuis, cabelo imenso, comprido e secretamente tapado. A voz que já não escuto povoa o amparo sereno que algumas vezes apanho. Sempre que subo as escadas elevo o sorriso mais escondido. Penetro nelas como se invadisse terreno meu.
Custa-me sorrir porque a falta não tem asas. Apalpo as paredes e ainda sinto o toque dos dedos da avó. Nunca sobra repetição. Tudo é cheiro reconquistado como se a vida não tivesse dias onde a saudade é o amanhã provável. Deixo-me mover pela inquietude e paro.
Viro costas à dor mas não desisto de voltar a escutar a voz da avó.

17 novembro 2005

Medos


Não raras vezes, vou às sortes com a vil convicção de abanar os medos. Toco-lhes como se toca em veludo. Ao de leve, como se o sopro fosse guia. Entro neles e chamo-os para um repasto sem ementa. O diálogo é quase sempre surdo. O jogo só é sedutor quando é enfrentado de frente. Com a rota inversa chega o banal. Quando acontece, os demónios resistem à expulsão e ganham forma sorridente. Um veneno que bebo num cálice de fracasso.

16 novembro 2005

Sinais

Sinais

Pasmo o olhar por tanto que se perde. Um desenfrear de sinais que descolam da memória à custa do que hoje se sublinha. O tempo é madrasto para quem resiste ao apego. Diante de mim tenho um corredor de vozes, outrora vivas. Espanto o som, vezes sem conta, para não acreditar que aindam resistem no meu mais secreto pulsar.
O chão barrosão é este campo de memórias.

15 novembro 2005

Conviver I

ConviverQuase todas as criaturas vivem, naturalmente, em grupo, desde o mais irracional animal até ao sapiente homem.

Tornou-se marca instintiva, incluída no processo natural de evolução , que é mais fácil susbstir em comunidade do que sózinho.
Viver em comunidade significa mais do que viver, deve significar conviver, elevar o viver a um patamar superior.

Conviver em comunidade, ora aí está uma possível frase para classificar o viver na aldeia, onde se partilha a vida com os vizinhos, dando como moeda de troca o tempo ("Vou dar um dia de trabalho ao António...") e onde se constroem e compartilham espaços comums como o Forno do Povo.

Cheiro frio

Calçada rural
De tenra idade percebi o valor do cheiro mais rural, menos urbano, mais cristalino, menos abafado. Era por lá que se cozinhavam os serões, as modas, a arte de prosear no mais cru dos sons. Nessa aurora, uma espreitadela pela calçada do lugar comunitário da minha aldeia vergava qualquer canseira. Recordo o centeio quente saído da fornalha que perfumava um dos locais mais míticos que já conheci. Lá no alto, quase sem norte, ouvia o zumbido, indefinido, de alguém que habituou os habitantes a desviar o olhar em direcção ao frio. Por essa altura a minha alma era um postigo sem fechadura...

14 novembro 2005

Subir na coragem

Forno do Povo
Pincelar conceitos nas trevas. Nem que seja isso. Por muito que doa a escrita e o horizonte mais longínquo. Todos somos o que desejamos. Poucos são os que teimam em continuar na falha.
Entrar no Forno do Povo é subir os degraus da coragem mais distante, mais rebelde. É ter, tantas vezes, o que não temos.
A porta está aberta. Ao entrarem ainda dizemos: "Quem é?".