11 setembro 2006

Andante

AndanteVoltei ao tempo do cabelo ao vento. Aos dias onde o corpo se despe e se entrega em libertação.
Os primeiros passos foram dados em marcha lenta. O chão não era desconhecido mas olhei-o, desta vez, sem palavra.
O silêncio, quase a trote, era interrompido pela falta de resistência. Não forcei porque o passado ajudou-me a moderar a batida cardíaca. Como fui feliz. Como sou feliz. Zarpar naquela terra desnivelada foi recuar aos pedaços da minha infância. Foi por lá que construí o meu castelo de cartas. Naquele tempo nunca vislumbrei areia porque tudo em mim era força. Não quero recuperá-la porque o tempo é um relógio que não pára.
Por momentos fui o cavaleiro andante de alguém que um dia acreditou em mim. Segui sempre sem parar porque parar, neste quadro, é desfalecer.
Neste regresso ainda não senti o fim e porque ainda não o senti já valeu a pena o risco. Vou lá voltar mais não seja pela falta da gazua que rasga o monte que tem o nome de Deus.

01 setembro 2006

Fragrância

Fragrância
Tudo que me rodeia é de uma fragrância extraordinária. O cheiro tem tempero.
As árvores despedem-se agora da robustez de um chão forte.
Viver por cá faz-me bem. Sempre fez. É uma mãe pátria que custa a vergar ao tempo moderno.
É nesta resistência que cozinho a minha metamorfose. Renovo-me à mercê do tempo porque é neste tempo que atinjo o meu estado maior.
Nos longos anos que possuo já pisei palcos diferentes. Todos me ajudaram a crescer mais mas nenhum ostenta o poder de me fazer despir o meu fato de gala.

31 agosto 2006

Grande resposta

Grande respostaOra aí está a grande resposta. De chofre. Crua e com a sonoridade das noites em desnorte. É a típica aposta onde se sabe que o erro vai vencer. Mesmo assim arrisquei na ingénua tentativa, estridente, de soltar os dias que ficam.
Com o que recebi, alastrei o caminho para a acidez da noite. Foi aqui que construí este curto texto no ambiente de outras noites. O que muda é o som da envolvência. Não da que tenho mas da que ouvi.
Por onde caminhavam os teus passos? Parar, na última noite, é coisa não justa e acredito que tivesses sido o cicerone da crueldade do desassossego. Fizeste bem. Fazes bem. O contrário é a inquietude perdida vertida em cântaro.
Que sejas digna da coragem do atendimento, sem rosto, que fizeste porque dentro de mim, hoje, há um rio, com lodo, a vaguear sem destino.

30 agosto 2006

Internacional

InternacionalA palavra não é nossa. Nunca o foi e duvido que o seja na minha existência. Não a vejo parir nesta terra. Há nela um voo sem rosto. Uma diabrura que fura o mais elementar dos egos.
Escutá-la da tua boca foi a mais desajustada tormenta que senti. O abalo levou-me para o tempo onde quase me afogou o verbo amar. Senti-me descer sem asas. Andei e sinto que ainda ano por lá.
Porém, hoje sair é mais fácil. Penetrei durante muito tempo no mar sem ondas. Acreditei que a nortada vinha sempre sem aviso.
Na minha infância houve sempre um farol dentro de mim. Só mais tarde, muito mais tarde, soube anotar que um olhar só apresenta relevo quando feito pela acalmia da erosão dos dias corridos.
É também neste tempo que recrio o teu quadro onde a palavra liberdade é muito mais que o valor da reciprocidade. Dizer-te que isto só me dói porque eu já lhe toquei e soube-me tão pouco comparado com a frescura deslumbrada do acordar.

29 agosto 2006

Embarque

Embarque

Cá estou eu. Tal como previa. Neste dia e a esta hora. Em volta, o odor brando do tempo antecipado.
Os olhos estão abertos. Falam no mais titubeante silêncio. É um falar sem voz. É um som que gira no interior da vaga que se aproxima.
Por cá, não há a maré da noite quente. Não tenho o estalar do mar.
Tenho o meu chão. O chão que piso. O chão que já pisaste.
Por esta altura há pouco na narrativa que coloque um sentimento a sobressalto. Acontece à custa da mais nobre das palavras: partilha; mesmo que o caldo do momento empurre a vaga do Verão que está a terminar.
Na volta, já não vais sentir o cheiro quente da maresia. Sentirás o olhar a rasgar-se na solenidade. Nada que te espante, nada que não prevejas nestes dois pares de noite.
Fiquei por cá porque é por cá que me sinto em enlevo. É a terra que amo. É a terra que me ama. E porque um filho deve sempre respeitar o pai, também eu zelo o tanto que recebo neste pedaço de Mundo.

11 agosto 2006

Cavaleira Andante

Cavaleira AndanteHoje vou falar de ti.
Nunca falei porque nisto há um misto de perda e inquietude que só agora habitam em nós. É como se o farol, há custa da intensidade dos dias felizes, produzisse cera, hoje derretida pela brancura das tardes quentes. E como está quente.
Por estes dias, o teu céu está escuro. Não foste tu que o fizeste tão pouco o aprecias, contudo, bem no fundo, sabes que espelha a semente que envenena a magia.
Também por estes dias, vi esse céu. Não lhe toquei porque fiquei diminuído pela força que ostenta. Um poder, bravo, que contamina o valor mais inquebrável do ser humano. A força era tal que me espantou sem lhe dizer o quanto me tem feito mal.
Apesar desta força, quero dizer-te que ele sucumbe ao pecado original. É leviano na arte do poder.

Daqui a pouco embarcas sem embarcar, mas daqui a uns dias o embarque tem toque. O medo, o inimigo da coragem, foi derrotado porque o tempo é sempre o comando.
Quero que saibas também que nunca lamentarei o trilho que fez nascer um nome que só existe em nós. O outro, o teu nome, terá o que o fado te reservar. Uma púrpura de sinais mas nunca digna da minha cavaleira andante.

08 agosto 2006

Olimpo

Olimpo
Terás tu o Olimpo dentro de ti? O que te segreda a luz que já não vês?
Imagino sempre a cortina desfeita. O pulsar impulsivo de uma imagem rasgada. É, muitas vezes, neste quadro que soletro a minha inquietude.
Ir ao teu encontro é a ironia perdida. É a ilusão do campo cheio de flores erguido na madrugada que se vai. Outrora, via este tambor como um rugido que atormentava o sussurro mais íntimo. Hoje tudo é mais clarividente. O tempo suga menos. Muito menos, Deixo-o mais vezes à sua sorte onde encontro a resposta, tantas vezes julgada perdida.

11 julho 2006

Volúpia

Regressei porque algum dia tinha que regressar. Estava escrito e tudo que está escrito tem uma história para contar.
Dizer-te que não lamentes o que passou. Centra a volúpia nos dias felizes. Tenho em mim o condão do embalo. Libertei-me do desassossego. Por culpa tua, sim, mas também por culpa minha.
Hoje o mote é individual. É aqui que está o fracasso. Porém, o alimento diário que não resistiu (lembras-te?) só o podemos lamentar em nós.
Recordo a caminhada, breve, em direcção a um rio único; invoco o suor e arrepio de espinha de uma ponte só nossa, mas recordo também as palavras que teimei em sublinhar. Hoje vergam à derrota de uma história. Porém, este não ter nunca será isolado.
Sei que tudo isto só será verdadeiramente perdido no dia que soubermos, em uníssono, o real significado da palavra volúpia. No dia que não conseguirmos espantar o momento no qual me interrogas-te "O que é a volúpia?". Lembras-te da resposta que te dei?.

25 março 2006

Chuva

Chuva

Volto com a chuva de Março. Com ela espanto o deserto dos dias pálidos. Tenho-me absorvido pela candura da normalidade. Um estado, sem armas, que me fez aterrar na brandura. Não tive o clarinete das manhãs amargas tão pouco o desgosto de um selvagem olhar das tardes rápidas. As noites não foram o despertar do rouxinol dos tempos onde o seco do escuro pede a pintura e a arte do amanhã.
Oiço agora uma voz que ecoa pela casa. Uma voz que destapei em 93. Ainda recordo o escuro da sala. Invoco a música, os olhares pregados no ecrã, o silêncio sem asas. Hoje consigo apalpar os acordes. Porém, as variações da voz não mudam. O que muda é o alcance do grito. Entra na casa dos sonhos como entra, tantas vezes, o que não tenho.
Paro com a sonoridade. Giro na envolvência. Crucifico os meus medos e liberto o que há de melhor em mim. Tal como na noite de 93, a chuva teima em cair...

10 fevereiro 2006

Nirma

NirmaAinda vejo o que não vi ontem. Um rosto que nasceu, aos meus olhos, do nada. Uma vida dilacerada e povoada de fantasmas. Um olhar inquieto mas doce. Uma rebeldia em desnorte. Um gracejo pedido. Uma luta sem armas.
A meio da descoberta interrogaste o silêncio. Pedi-te para não o fazeres porque a pomba só existe em voo. Há nisto um disparo sem tiro. Um nada que grita em contínuo. Desde o momento que aceitaste o convite que desarmei o irreal. Convidei o lógico para ser servido na teia obscura do que não se conhece. Não há toque. Não há cheiro. O que há é a ilusão dos dias felizes, travada, a espaços, pelo cru do abismo.
A conversa terminou em incerteza. Pelo meio a verdade da dor. A verdade reclamada e usurpada pelo que não suportamos ler. A escolha está nas nossas mãos. Sempre estará. O amanhã pode ser perto demais caso deixemos de escutar as gazuas do monte.

27 janeiro 2006

Vulto

Quem és tu afinal? Tu que vomitas o asco da palavra fácil. Tu que tropeças no mais elementar dos jogos. Pisas a surdina e representas o banal. Contudo, andas por cá. Um vulto, nórdico, de óculos fora de tempo, de resposta em disparo. Voltas sempre porque este calor é o calor do tempo que já não tens.
Lembro, nas curtas frases que te oiço, o quanto brilhas com o tempo onde a luz eram as estrelas do monte. Entro em ti porque sou, em parte, o que não consegues ser. Não pela genialidade mas pela lembrança, crua, que te levo sempre que te deixas embarcar pela infância.
Não te peço para curvares o que tens em ti. Jamais o farias porque o pedestal, hoje, não te permite parar. Porém, o tempo é madastro para aqueles que o trepam. Tu serás o pedinte da favela rica. Um corpo sem perfume. Nessa hora nem um golpe de asa te valerá.

26 janeiro 2006

Tela


Que espécie de tempo é este onde a lamparina ilumina a estrada sem chama?
Passeio por ela na vil ideia de a vencer. Dificulto o andar porque desde logo percebi a roupa que agora possui. Os braços, os meus braços, vergam pelo pavor do olhar possuído. Porém, é este esguiço frio que me seduz. Alimenta o escuro dos dias gélidos construídos pelo luar.
Tudo me inquieta mas é nisto que cresço. Sem ela, derrotava o meu ego. É com ela que pinto o que necessito. Uma tela branca sem nada aos olhos fáceis. Uma diabrura, branda, bafejada por alguns seres que já por aqui passaram.

17 janeiro 2006

Corpo


O tempo hoje é de dor. Um dia que vai ser martelado por um corpo que partiu. Um espírito viajante, negro pelo dia. Há neste retrato um elevador de lembrança. Um rasgo que se fixa pelo enlevo dos dias tristes. Mesmo assim, ganho concórdia pela coragem da troca. Cheiro nisto um fado rebelde. Uma agulha que atiça o que deixamos escapar por entre os dedos. O perdão nublado. O voltar ao que verdadeiramente queremos.
Neste jogo sem baliza, solta-se o incontrolável. Porém, há muito que uma parte já não obedece ao descontrolo. É aqui que o jogo está onde deve estar.
Perder é morte. Ganhar é mais uma etapa do fim anunciado.

13 janeiro 2006

Chão


O que tenho dentro de mim é a névoa sublime. O sussurro da partida. O cheiro perdido.
Um rasgo, em imagens, que povoa um tempo com tempo. Uma ponte que grita pela mão trémula do primeiro encontro.
Sigo o trilho do lobo. O chão puxa-me para a maré de um mar que já não tenho em mim.
Tropeço na areia fina. Ainda sinto o peso do fim de tarde que empurrou o calor da ilusão. Vejo agora os rostos da dor. De novo, o aperto de mão. A coragem da estrada cruzada por magotes de gente sem nome.
Neste retrato desarticulado, componho a sina da palavra.
Saio da história. Não sinto o que piso mas alguém me reclama a vida. É por ela, sempre por ela, que sigo viagem até ao fim.

28 dezembro 2005


Rasgo a última página do livro deste ano. No íntimo, acredito que ainda possuo lenha para queimar. A porta continua aberta. Há um misto de dependência e de ilusão dentro de mim. Enquanto sentir este trilho há razões para cá voltar.
Se bem se recordam, no destapar da peneira, os autores deste blog assinaram, em uníssono, que a casa tem a porta às sortes. É uma singela invocação aos tempos idos do Barroso. Não porque ficou bem escrever e convidar mas porque acreditamos que este espaço só tem sentido pelo genuíno. Anotamos os comentários. Em nós, só ficam os que merecem.
Hoje subo ao monte crispado pela geada. Ao caminho gélido de uma noite sem lua.
Aos que cá entram há uma coragem nobre. Coragem que será sempre inimiga do medo. Em cada um, o recanto do desenho individual.
Voltarei no desabrochar do espigo.

16 dezembro 2005

Fado maior

Fado maior
Mandei às favas o canudo e fui direito ao fado maior. Naquele tempo, o meu colete de forças era a pena que ainda hoje amo. Porém, mudou a arte. O desarme não provoca plateias, o improviso é cada vez menor, sobra, a espaços, o amargo de boca espantado com espasmos como este.
O previlégio sempre veio ao meu encontro. Não sinto grande mérito da minha parte. Há aqui uma sina de porta aberta que me evita tropeçar.
Há em todos um livro. Frases soltas que podem ou não ganhar corpo. Nunca fui de mira fácil porque o meu mote é quase sempre construído ao calhas. Pelo meio, o horizonte é uma noite de céu limpo. O fecho casa, quase sempre, com a sorte. É nesta estrada que cruzo os ideais da infância com a crença perene do hoje. Sem conflito. Ganhou a força por dias melhores. Venceu a partilha, sustentada na convicção e no arrasto de mais alguém.

13 dezembro 2005

Áurea


Há uma áurea dentro de mim que não morre. Um ser que gravita sem parar. Um caminho desalmado que embala um passado de sorriso e dor.
Que cordão de fogo terás? Que ilusão preenche o teu caminhar? Será que ainda invocas o sopro do Norte, o rasgão da madrugada incessante?
Há em mim um clarão. Uma luz que apaga o desabrochar da aurora. Um respiro abafado. Um quadro sem tela.
Por vezes, volto ao cais. Empurro o vazio com um lampejo de prazer. Um vício devastador que não consegue sugar o amanhã.
Irás tu um dia ler-me? Terás, na tua mão, a proa dos dias felizes?
Lanço o nada sem ter a ingénua crença do reencontro.
Não fui feito para tocar o céu duas vezes.
O meu trilho obedece ao que não tenho.

05 dezembro 2005

Noites Passadas

São talvez as melhores amizades que se fazem. Aquelas que se criam em noites perdidas na conversa e nos copos, tainadas até às tantas, sem preocupação com os horários, nem com o despertar da manhã do dia seguinte...

Desde o fado ao futebol tudo se discute, e quando as garrafas e copos se começam a amontoar em cima da mesa, trazem consigo uma "fluidez " no discurso que o prolonga por vezes até o sol nascer.

Guardo boas recordações destes momentos onde se cultiva a verdadeira amizade, desinteressada...

25 novembro 2005

Neve

Neve
O tempo cheira a neve. O manto branco que me leva para tanto de mim. É nele que embrulho alguns esguiços olhares e raros calores de outros tempos. Sempre que a vejo, sempre que a toco, há em mim uma limusine parada de sensações. Quase sorrio. Gosto de a observar em silêncio. Sempre que o tempo me deixa deixo-me esbarrar. É como se o meu corpo, congelado, fosse um amontoado de sentimentos e tradições. O embalo é imperturbável. É assim que o vivo como se criasse uma história sem mote.
Hoje parei num olhar rebelde. Sem norte mas com uma inquietante personalidade. Cozemos o tempo como uma partilha de lareira. Destapamos o que acreditamos e contemplamos, quase no fim, o céu branco. As palavras tinham a ânsia descomungada. Foi ai que alguém soltou: "Hoje vai nevar...". Continuamos a subir a calçada à espera dos pedaços brancos.

23 novembro 2005

Saudade

Esta será porventura a palavra que melhor descreve a linguagem e o sentir português...

A saudade apodera-se de nós, especialmente nos momentos a seguir às despedidas - árduas - em que parecem não existir outras pessoas com quem conviver.

Pensar no que passamos juntos, nas conversas que tivemos, nas maluqueiras que faziamos...

Pior é pensar que perdemos a oprtunidade de viver juntos as experiências actuais, diferentes é certo, mas mais saborosas quando partilhadas.


"E regresso às duas coisas nulas em que estou certo,
de nulo também que sou - à minha vida quotidiana de
transeunte incógnito, e aos meus sonhos
como insónias de acordado."
( Fernando Pessoa )


Roda do tempo

Roda do tempo
Estou na roda do tempo. Quase sempre estamos. Uma vertigem insuflável que abomina o mais secreto avanço. Troco, com o companheiro do lado, um postal de amizade na esperança de o deter por entre os dedos. É neste círculo invisível que construo, tantas vezes, o tempo. O que tenho e o que me foge. O que possuo no silêncio da mais amarga noite e o que não agarro na mais sensata luminosidade. Não faço balança porque abomino o que defendo como incomparável. Afinal, cada qual é como o lince que observa, de soslaio, a presa. Uma bandeja com nada. Um serpentear de ilusões. Um cavaco brando oleado por um trago.
A páginas tantas deixo o que nunca deixo. Um palco nu à mercê dos aplausos que não se ouvem.

22 novembro 2005

Desordem

Desordem
Há dias que a lógica me atormenta. Pontapeia o que mais preciso: a desordem. Tenho em mim um sussuro leviano que me empurra para o nada. É nele que alinho o meu caos interior. Sobrevivo à custa da ponte imaginária que sustento na insustentável penumbra dos meus olhos. Não há guia nem abraço que alimente esta penumbra decadente. O degredo não é maior porque floresce a inesgotável ternura do gesto. Eis-me ali sem nada e com tudo. Tenho até hoje a hipocrisia sobrenatural de me manter de pé sentado numa mesa de paz.
Sem contar, corre uma voz pueril, virgem, que enche o sonho de menino e me impele a continuar.

21 novembro 2005

Parir

Parir
Ao parir este curto texto dedilho a mente.
Parir é criar. É ver nascer. É sentir o que não havia. É tocar no novo.
Barroso é chão fértil. Natureza e homem beijam-se muitas vezes. Tocam-se. Por entre dias, vislumbrei momentos ricos: parir da ovelha; abrir de olhos do pássaro; calor da língua da vaca em volta do rebento; disparo fértil da coelha; olhos doces da gata; inquietude, em copa, da cadela; abraço da galinha.
Este fado resiste. Basta saltar a barreira. Mergulhar no pó. Corroer o caminho.
Nesta pátria há lugar à escolha porque ainda possuimos o enlevo do Mundo pintado a preto e branco.

19 novembro 2005

Serões

Serões
Rasgo a minha infância de várias formas. Uma delas é quando invoco os serões onde a televisão era um ser estranho. Matava-se o tempo por entre fumo e prosa. A luz era fraca. O frio entrava em postigos que sinalizavam portas e janelas. Não existia pudor no contacto, na partilha. As mesas eram de madeira fumada. Os pratos de esmalte roído pelo uso. Os copos, pequenos e poucos.
Tinha palmo e meio de vida. Observava, com olhos largos, a caneca de vinho que girava de boca em boca. Tinha uma jarra escura, desenhada, com água, como companheira.
Nesse tempo, as histórias eram arte. O tempo dava tempo ao tempo. As mãos calejadas eram afagadas pelo calor da lareira. Neste palco, havia lugar e licença para cães e gatos. Os restos caiam como folhas de Outono.
Hoje sugo esse tempo com a felicidade dos dias felizes. Não lamento a perda porque vivi em harmonia. Porém, neste passado sem dupla anoto que recebi mais do que dei.

18 novembro 2005

Avó

Avó
Manhã cedo pisei o chão da casa da avó. A avó que já não tenho. A mulher de rugas na guelra que não morre em mim. Era nela que via o fiel retrato do Barroso. Uma gravura de olhos azuis, cabelo imenso, comprido e secretamente tapado. A voz que já não escuto povoa o amparo sereno que algumas vezes apanho. Sempre que subo as escadas elevo o sorriso mais escondido. Penetro nelas como se invadisse terreno meu.
Custa-me sorrir porque a falta não tem asas. Apalpo as paredes e ainda sinto o toque dos dedos da avó. Nunca sobra repetição. Tudo é cheiro reconquistado como se a vida não tivesse dias onde a saudade é o amanhã provável. Deixo-me mover pela inquietude e paro.
Viro costas à dor mas não desisto de voltar a escutar a voz da avó.

17 novembro 2005

Medos


Não raras vezes, vou às sortes com a vil convicção de abanar os medos. Toco-lhes como se toca em veludo. Ao de leve, como se o sopro fosse guia. Entro neles e chamo-os para um repasto sem ementa. O diálogo é quase sempre surdo. O jogo só é sedutor quando é enfrentado de frente. Com a rota inversa chega o banal. Quando acontece, os demónios resistem à expulsão e ganham forma sorridente. Um veneno que bebo num cálice de fracasso.

16 novembro 2005

Sinais

Sinais

Pasmo o olhar por tanto que se perde. Um desenfrear de sinais que descolam da memória à custa do que hoje se sublinha. O tempo é madrasto para quem resiste ao apego. Diante de mim tenho um corredor de vozes, outrora vivas. Espanto o som, vezes sem conta, para não acreditar que aindam resistem no meu mais secreto pulsar.
O chão barrosão é este campo de memórias.

15 novembro 2005

Conviver I

ConviverQuase todas as criaturas vivem, naturalmente, em grupo, desde o mais irracional animal até ao sapiente homem.

Tornou-se marca instintiva, incluída no processo natural de evolução , que é mais fácil susbstir em comunidade do que sózinho.
Viver em comunidade significa mais do que viver, deve significar conviver, elevar o viver a um patamar superior.

Conviver em comunidade, ora aí está uma possível frase para classificar o viver na aldeia, onde se partilha a vida com os vizinhos, dando como moeda de troca o tempo ("Vou dar um dia de trabalho ao António...") e onde se constroem e compartilham espaços comums como o Forno do Povo.

Cheiro frio

Calçada rural
De tenra idade percebi o valor do cheiro mais rural, menos urbano, mais cristalino, menos abafado. Era por lá que se cozinhavam os serões, as modas, a arte de prosear no mais cru dos sons. Nessa aurora, uma espreitadela pela calçada do lugar comunitário da minha aldeia vergava qualquer canseira. Recordo o centeio quente saído da fornalha que perfumava um dos locais mais míticos que já conheci. Lá no alto, quase sem norte, ouvia o zumbido, indefinido, de alguém que habituou os habitantes a desviar o olhar em direcção ao frio. Por essa altura a minha alma era um postigo sem fechadura...

14 novembro 2005

Subir na coragem

Forno do Povo
Pincelar conceitos nas trevas. Nem que seja isso. Por muito que doa a escrita e o horizonte mais longínquo. Todos somos o que desejamos. Poucos são os que teimam em continuar na falha.
Entrar no Forno do Povo é subir os degraus da coragem mais distante, mais rebelde. É ter, tantas vezes, o que não temos.
A porta está aberta. Ao entrarem ainda dizemos: "Quem é?".